sexta-feira, 9 de outubro de 2009

(to bury future lovers, ilustração de ray jones)


e um dia aprendi como é fácil perder-me por todos os quartos do coração.
quando era pequena os meus pais ainda faziam viagens de dias e dias pelo interior de portugal, comigo enroscada no banco de trás a suar com o calor do alentejo.
numa dessas viagens intermináveis a minha mãe comprou uma cassete de fado, e viemos a ouvir a amália incessantemente - foi assim que uma menina de cinco anos aprendeu a trautear fados inteiros.
cresci a gostar de amália com um afecto muito grande e primário, e do mesmo modo que dificilmente compreendemos línguas diferentes, nunca percebi bem como é possível não querer essa coisa estranha e visceral que é a saudade.

no outro dia um professor de psicologia social disse-me, a propósito de um projecto de investigação, 'estamos a tentar encontrar a definição científica de saudade', e eu pensei, perplexa: este senhor nunca ouviu amália.

e não há nada mais cientificamente português do que o NOVO FADO DA SEVERA (aqui cantada por dulce pontes), a música que nunca me saiu do ouvido, (com ou sem dez anos de morte de amália).

terça-feira, 6 de outubro de 2009


(ilustração de romy bluemel)

ando há cerca de uma semana à procura de um garfo.
é mesmo isso, falta-me um garfo, não sei como o perdi, só que me tem sabido mal o pão e a água e outras coisas que uso para viver.
nunca pensei que aquilo com que levas a comida à boca se tornasse, de repente, o alimento.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

(ilustração de gustavo aimar)


Sobre a 'alegada hipertrofia da individualidade entre a juventude actual'
(só porque os títulos demasiado grandes dão aquele ar intelectual de tese),
na Super Interessante deste mês:

"(...) se há algo que representa essa alegada hipertrofia da individualidade entre a juventude actual é a proliferação dos blogues. Os diários digitais transformaram-se na forma predilecta de falar de si próprio enquanto se comunica com os outros de forma totalmente livre. John Hiler, editor do Microcontent News, uma publicação online sobre notícias da blogosfera, afirmava: "Existe algo no formato que estimula um desenvolvimento quase canceroso do nosso ego." (...)

não sei se esta 'alegada hipertrofia da individualidade entre a juventude actual' pertence só à juventude, ou só à juventude actual, ou a nenhuma das duas.
há qualquer coisa que mexe comigo quando ouço expressões como 'a juventude de hoje' - uma criança, um adolescente, um jovem adulto, um adulto ou um idoso nunca deixam de ser a classe representativa da sua época - e com todas as condicionantes que essa época implica, uma criança não deixa de ser uma criança, e o mesmo se aplica ao resto.
de resto, quando se fala da ingenuidade com que os adolescentes/jovens adultos de hoje se arriscam a investir em cursos que 'não dão nada': não acredito que alguém que tenha crescido, como eu, a ouvir que a inflação das qualificações não vai parar de subir, que vai ter de trabalhar a recibos verdes para ganhar experiência, se, com muita sorte, conseguir emprego depois, e que, em suma, teve um azar dos diabos para ter aparecido no mercado de trabalho logo quando todas as hipóteses de sucesso se esgotaram; não acredito que se invista por ingenuidade, a não ser que a ingenuidade seja uma forma de coragem.
e desse ponto de vista, quem agora não precisa de um desenvolvimento quase canceroso do seu ego para tirar um curso de design, de cinema, de psicologia ou de culinária?

e que bom que, (com mais ou menos ego), entre os filhos da geração que nunca deixou de chorar o sonho imperfeito de Abril, ainda há gente corajosa.