quinta-feira, 12 de novembro de 2009


um adeus português

Nos teus olhos
altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensangüentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não
podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não
podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não
podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Mas tu não
mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não
tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
Nesta curva
tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti

Alexandre O'Neill

a história deste poema é tão lancinante como as suas palavras. vale a pena descobrir.

terça-feira, 10 de novembro de 2009


hoje a ana luísa fez anos.
vadias em tempo de chuva.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

(ilustração de matteo perazzoli)

os sonhos como
tangerinas a derreter na lingua,
E perguntas-me se todas as rugas valem o fim do mundo.

“Na civilização mecânica,
não há mais lugar para o tempo mítico,
senão no próprio homem.”

Lévi-Strauss, Antropologie Structurale

um dia destes perdi-me horas na biblioteca a ler 'O mito individual do neurótico' de Lacan, mais para me perder em Lévi-Strauss, (a obra parte da seguinte premissa do antropólogo: a interpretação freudiana do mito grego (Édipo) é ela própria uma versão desse mito), do que na psicanálise.
achei absolutamente apaixonante o modo como este senhor se debruçava sob os ritos mais ancestrais e longínquos da civilização moderna para explicar aquele que será provavelmente, um dos últimos mitos da nossa 'sociedade quente' - a psicanálise e, em última instância, a psicologia.
cheguei a casa e enquanto contava à minha mãe a minha descoberta mais feliz dos últimos tempos, aparece no telejornal a imagem de Lévi-Strauss : "(...) morreu de ataque cardíaco em Paris na noite de sexta para sábado, (...) o antropólogo social mais influente da segunda metade do século XX(...)".
é caso para dizer que Lévi-Strauss nasceu para mim no dia em que morreu.
(nostalgia, ilustração de gabriel pacheco)


(...)
O ciúme dói do leito à margem,
dói pra fora na paisagem,
arde ao sol do fim do dia.
(...)

caetano veloso, 'dor de cotovelo'